Artigo
Uma crônica para o nosso tempo
De Thomaz Wood Jr.

Ray Bradbury publicou Fahrenheit 451 em 1953. François Truffaut dirigiu a primeira versão cinematográfica em 1966. Ramin Bahrani realizou uma adaptação menos feliz recentemente, para a HBO. Reedições do livro e a refilmagem comprovam sua atualidade.
A obra de Bradbury é uma distopia passada em uma sociedade do futuro, na qual a tecnologia é onipresente e da qual os livros foram banidos. A temperatura de 451 graus Fahrenheit é aquela na qual o papel entra espontaneamente em combustão.
No mundo imaginado pelo autor, os livros tornaram-se anacrônicos, incapazes de se adequar à redução da capacidade de atenção dos indivíduos e à sua obsessão pelo entretenimento.
O personagem principal, Guy Montag, é um bombeiro cujo trabalho consiste em queimar livros banidos. Mildred é a esposa do bombeiro, viciada em pílulas para dormir e permanentemente vidrada no mundo virtual das telas de tevê.
Capitão Beatty é o chefe de Montag, que foi um leitor voraz, mas passou a odiar livros. Clarisse é uma adolescente que mora perto do bombeiro, desviante em uma sociedade conformista que por suas ideias desperta a visão crítica de Montag.
Bradbury escreveu a obra sob o trauma da Segunda Guerra Mundial e as queimas de livros promovidas pelos nazistas. A União Soviética vivia a era de expurgos de Stalin, com perseguição a cientistas e artistas. Seu país, os Estados Unidos, passava também por uma ameaça à liberdade de expressão com a prática da censura e as listas negras criadas pelo macarthismo.
O autor inspirou-se também na crescente presença de aparelhos de tevê nos lares americanos. Projetou em sua obra uma sociedade hedonista com as pessoas entretidas por enormes telas em suas casas, alienadas, vazias e insipidamente felizes.
Os livros, banidos, constituíam ameaças concretas à felicidade, pois podiam estimular a reflexão, o pensamento crítico e a dor.
As descrições de Bradbury sobre a interferência da tecnologia na vida humana são premonitórias. Ele antecipa o tempo livre cada vez mais ocupado por pacotes eletrônicos de diversão, a memória individual sendo progressivamente substituída pela digital e drogas sintéticas modulando sensações, emoções, sono, atenção e sexo.
Os livros não foram (ainda) banidos. De fato, as vendas permanecem estáveis. No entanto, correr os olhos pelas listas de best sellers pode fazer o mais otimista bibliófilo convencer-se de que Bradbury acertou.
A transformação vislumbrada pelo autor de Fahrenheit 451 é uma mudança de base popular, não obra de um governo totalitário. De fato, o próprio Bradbury admitiu que o povo, não o governo, era o verdadeiro responsável pelo estado das coisas na sociedade de Fahrenheit 451.
Hoje, nós preferimos a tevê ou o YouTube aos livros e substituímos a reflexão pelo entretenimento. Abraçamos frequentemente a noção de felicidade rasa propagada em campanhas publicitárias. Deixamos que aplicativos e algoritmos nos indiquem o que cobiçar e comprar. Abrimos mão da privacidade e da individualidade em benefício da comodidade.
As tendências vislumbradas pelo autor são agora aceleradas pelas novas tecnologias de comunicação e informação e pelo avanço da biotecnologia.
O desaparecimento de empregos, substituídos pela mecanização intensiva na agricultura, por autômatos na indústria e pela inteligência artificial nos serviços atesta a crescente irrelevância dos seres humanos nos sistemas produtivos.
Juntamente com a relevância produtiva desaparecem a força política e a capacidade de controlar o próprio destino. Países na Ásia e no Oriente Médio já exploram em larga escala as possibilidades de uso da tecnologia para controle social.
Em rincões onde a incapacidade organizativa freia involuntariamente impulsos totalitários, corporações fazem as vezes de oligarcas induzindo opiniões, atitudes e comportamentos sem necessidade de sistemas de vigilância.
Conforme as máquinas se tornam mais capazes do que nós para tomar decisões – no trânsito, nas compras, nos relacionamentos e além –, abdicamos de fazer buscas e escolhas. Com a falta de uso, vão-se as nossas habilidades de navegar, pensar e decidir.
Depois de queimar todos os livros ou transformá-los em pálidos simulacros de literatura, talvez voltemos à velha Caverna de Platão, então com chamas eletrônicas e sombras digitais.
Thomaz Wood Jr.
possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (1982), mestrado em Administração de Empresas pela FGV-EAESP(1992) e doutorado em Administração de Empresas pela FGV-EAESP (1998). Foi pesquisador visitante na New York University in 1994-1995. Editor da RAE Revista de Administração de Empresas, de 2000 a 2004. Atualmente é professor titular da Fundação Getúlio Vargas (SP), onde coordena o GVpesquisa, área interna de fomento à pesquisa. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Estratégia e Estudos Organizacionais, com interesse de pesquisa nos seguintes temas: mudança organizacional, indústrias criativas e impacto social do conhecimento.
![]() |
|